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IGNORÂNCIA OU MÁ FÉ SOBRE AS HIDRELÉTRICAS EM TERRA INDÍGENA
Valor - Opínião
14-09-2016
Por Claudio Sales e Alexandre Uhlig
Valor - No início de agosto, o processo de licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica (UHE) São Luiz do Tapajós, no Pará, foi arquivado pelo Ibama porque os estudos complementares necessários para a análise da viabilidade não foram entregues dentro do prazo previsto.
Apesar de arquivado, a legislação prevê que o projeto possa ser retomado a qualquer momento, mediante nova análise. Isto é muito diferente do que parte da mídia e algumas instituições vêm divulgando. Segundo a versão divulgada, o projeto teria sido cancelado ou declarado como inviável do ponto de vista socioambiental.
Projetos considerados complexos do ponto de vista socioambiental são passíveis de revisão como já ocorreu em outras ocasiões. Os projetos das usinas Canoas, na divisa dos Estados de São Paulo e Paraná, e do Complexo Madeira, em Rondônia, foram revistos e então aprovados pelos órgãos ambientais, construídos, estão em operação e tornaram-se as usinas Canoas I e II (no rio Paranapanema) e Santo Antônio e Jirau (no Rio Madeira).
Outra falsa informação que vem sendo divulgada em virtude do licenciamento ambiental da UHE São Luiz do Tapajós é que "a Constituição proíbe alagar terra indígena".
País tem de decidir o que quer de seu potencial hidrelétrico, já que 71% dos projetos estão perto de áreas indígenas
Embora ainda haja uma discussão sobre se a UHE São Luiz do Tapajós interfere diretamente em terra indígena, a Constituição (artigo 49) atribui como competência exclusiva do Congresso Nacional "autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos". Ou seja, é possível o aproveitamento de recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, em terras indígenas.
A Constituição ainda prevê (artigo 231) que as comunidades afetadas precisam ser ouvidas, na forma da Lei, para que ocorra o aproveitamento dos recursos hídricos em terras indígenas. Por outro lado, a Constituição proíbe, no mesmo artigo 231, a remoção de grupos indígenas de suas terras, salvo em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população.
É bom esclarecer que as hidrelétricas não necessariamente removem grupos indígenas de suas terras. No Tapajós, haveria a inundação de 7% da área total solicitada pela Funai para demarcação como Terra Indígena. Como medida possível para redução do impacto da usina, a área correspondente à parcela da terra indígena que seria inundada poderia ser adquirida em área contígua a fim de manter, ou até mesmo ampliar, a área total da terra indígena. Portanto, caso haja interferência em área habitada por povos indígenas, nada impede o remanejamento da população indígena dentro do seu próprio território.
É preciso pensar nesse tema sem preconceitos e com objetividade técnica. Todos os empreendimentos de infraestrutura (estradas, portos, usinas para geração de eletricidade, poços de petróleo, gasodutos etc) que permitem o desenvolvimento econômico e social provocam impactos sobre o meio ambiente e sobre a sociedade. Portanto, as escolhas do país devem ser feitas com base em análises serenas e bem fundamentadas, em pleno cumprimento da legislação, e não influenciadas por pressões como as que temos assistido. Afinal, a legislação socioambiental brasileira é exigente, moderna e democrática.
Uma análise serena inclui um olhar sobre experiências passadas que desmontam o argumento segundo o qual hidrelétricas seriam uma ameaça a populações indígenas.
Um exemplo documentado é o do povo indígena Waimiri-Atroari, que habitava parte da área do reservatório da hidrelétrica de Balbina, construída na década de 80 e justificadamente criticada do ponto de vista energético, econômico e socioambiental. Por imposição dos financiadores do projeto, a Eletronorte implantou um programa de desenvolvimento para aquele povo indígena.
Após a demarcação da terra indígena (primeira providência do programa), foram desenvolvidas ações nas áreas de saúde, educação, meio ambiente, apoio à produção, documentação e registro da memória dos Waimiri-Atroari. Como resultado, depois de quase 30 anos a população, que era de 374 pessoas e decrescia a taxa de 20% ao ano, chegou a 1.633 indivíduos e seu índice de crescimento vegetativo chegou a 4,8% ao ano. O número de aldeias aumentou e não há registro de casos de alcoolismo nem de outras mazelas causadas por desajustes sociais.
Os Waimiri-Atroari desfrutam hoje de melhores condições de vida, tanto se comparadas com as das demais etnias existentes no Brasil, quanto em comparação com as da população não indígena do interior da Amazônia.
É importante que a sociedade e as próprias populações indígenas conheçam os fatos para diminuir sua fragilidade diante da influência e interferência de organizações que dizem "cuidar" dos índios quando, na verdade prestam um desserviço aos mesmos, omitindo informações, ocultando a realidade de projetos que deram certo, e mantendo-os na ignorância. Afinal, para algumas dessas organizações a harmonização entre projetos de infraestrutura e comunidades locais seria o fim de suas "bandeiras".
Independentemente do que será feito com a UHE São Luís do Tapajós, o país precisa decidir o que pretende fazer com o seu potencial remanescente em hidrelétricas, uma vez que 71% dos projetos estão próximos de (ou interferem em) terras indígenas.
Não podemos abandonar o cenário onde, por meio do diálogo respeitoso e objetivo, hidrelétricas gerarão desenvolvimento social tanto para a população em geral, que poderá contar com energia a preços competitivos, quanto para a população diretamente afetada (incluindo a indígena), que passará a usufruir de uma qualidade de vida melhor proporcionada pelo benefício econômico trazido por usinas que precisam ser construídas de acordo com as melhores práticas socioambientais globais.
Claudio J. D. Sales e Alexandre Uhlig são do Instituto Acende Brasil